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Virtus Essendi: O Ser intensivo em Santo Tomás e Pseudo-Dionísio

O filósofo Fran O'Rourke, em seu trabalho Virtus Essendi: Intensive Being in Pseudo-Dionisius and Aquinas, investiga a noção de virtus essendi, ou seja, a potência e intensidade do ser, dentro do pensamento de Santo Tomás e de autores neoplatônicos, com particular atenção à influência de Pseudo-Dionísio.

Há uma boa analogia entre os vitrais de uma igreja e o conceito de Virtus Essendi. Exploraremos esta analogia ao final deste artigo.
Na foto: interior da Sainte Chapelle de Paris.

A obra examina a concepção metafísica do ser (esse) como algo que pode ser compreendido em termos de intensidade e gradação, ao invés de um mero ato uniforme. Esse conceito deriva do pensamento neoplatônico e tem repercussões fundamentais para a teologia e a metafísica cristã. O Pseudo-Dionísio, em particular, influencia essa visão ao conceber o ser como algo que flui hierarquicamente a partir de Deus, de maneira intensiva, e não apenas extensiva.

O'Rourke argumenta que a concepção de um virtus essendi intensivo, herdado do neoplatonismo e reelaborado pela escolástica, oferece uma compreensão mais profunda da participação do ser criado no Ser divino. Essa visão permite entender a hierarquia do ser de maneira não apenas quantitativa, mas qualitativa e intensiva, reforçando a centralidade do esse divino na metafísica cristã.

Para melhor compreender a noção de Virtus Essendi,  tão importante para uma compreensão aprofundada da obra do Doutor Angélico, convém que saibamos, primeiro, o que é o ser, o que é a participação, e o que é a analogia.

Uma vez explorados estes conceitos, detalharemos a noção de Virtus Essendi propriamente dita. Para demonstrar que este é um conceito com sólido fundamento na realidade, detalharemos como a razão natural é capaz de alcançá-la, e como esta noção é instrumento para que melhor se compreenda as provas da Existência de Deus. Veremos, por fim, a analogia que há entre a Virtus Essendi e o vitral.

1. O conceito de Ser

Para compreendermos mais perfeitamente a noção de virtus essendi, convém relembrarmos a noção tomista de ser ou actus essendi.

1.1 O Ser como Ato

O ser (esse) é o ato (atributo ou perfeição) primeiro e fundamental de tudo o que existe. O ser não é uma mera forma ou acidente, mas o princípio que atualiza a essência, conferindo-lhe realidade. Isso significa que algo não é simplesmente porque possui uma essência determinada (como "humanidade" no caso do homem), mas porque essa essência recebe o ato de ser. Por isso, Deus, em quem essentia e esse se identificam, é o Ser por essência (Ipsum Esse Subsistens), enquanto as criaturas possuem o ser por participação.

1.2. O Ser como Participação

Na tradição neoplatônica, herdada por Dionísio e assimilada por Santo Tomás, o ser é participado hierarquicamente: Deus, sendo o Ser absoluto, comunica esse ser às criaturas de forma proporcional à sua capacidade. Assim, há uma gradação ontológica, onde alguns entes possuem um ser mais pleno e intenso que outros, mas todos derivam sua existência de Deus.

1.3. O Ser como Analogado Primeiro

O ser se diz de muitas maneiras, mas sempre em referência ao Ser primeiro, Deus. A analogia do ser evita os extremos do univocismo (que igualaria Deus e criaturas) e do equívoco (que tornaria impossível qualquer conhecimento de Deus). Assim, quando dizemos que Deus e as criaturas "são", não o afirmamos no mesmo sentido, mas segundo uma participação ordenada.

O ser, portanto, é o ato que atualiza as essências, provém de Deus como sua fonte absoluta e se comunica analogicamente às criaturas. Essa concepção metafísica fundamenta toda a doutrina da criação e da participação, e dela decorrem questões essenciais sobre a hierarquia dos entes e a relação entre Deus e o mundo. Detalharemos esta questão mais adiante.

2. O Conceito de Participação na Metafísica

O conceito de participação (participatio) é central na metafísica tomista e deriva da tradição platônica e neoplatônica. Ele explica a relação entre Deus e as criaturas, bem como a estrutura hierárquica do ser. Fundamenta-se na ideia de que as criaturas possuem o ser (esse) de modo derivado e limitado, enquanto Deus é o Ser absoluto (Ipsum Esse Per Se Subsistens). A participação resolve a questão de como as criaturas podem ser reais sem serem idênticas a Deus e como a multiplicidade pode existir sem comprometer a unidade do Ser.

2.1. Origem Platônica da Noção de Participação

O conceito remonta a Platão, especialmente ao seu ensino sobre as Ideias. No Banquete e na República, Platão explica que as coisas sensíveis "participam" das Formas eternas: um belo objeto é belo porque participa da Beleza em si. 

No Parmênides, ele reconhece a dificuldade de explicar essa relação, o que levou os neoplatônicos a desenvolverem a teoria da emanação.

2.2. A Participação na Tradição Neoplatônica e Pseudo-Dionísio

Plotino, Proclo e, mais tarde, Pseudo-Dionísio reformulam a participação de maneira hierárquica: Deus é o Uno que irradia o ser, e as criaturas recebem essa emanação segundo diferentes graus de perfeição. Essa concepção influencia fortemente a teologia, pois permite entender como Deus cria sem ser modificado e como as criaturas refletem a sua bondade sem esgotá-la.

Dionísio explica que todos os seres "participam" de Deus de modo ordenado. Essa participação é intensiva, não apenas extensiva: algumas criaturas participam mais plenamente do ser do que outras, formando uma hierarquia do ser.

2.3. A Participação na Metafísica de Santo Tomás de Aquino

O Doutor Angélico adapta essa noção ao contexto da doutrina da criação e do ser. Ele distingue entre dois tipos principais de participação:

a) Participação do Ser (Participatio Essendi)

Aqui, S. Tomás aplica a participação à relação entre Deus e as criaturas. Deus é o Ser por essência (ipsum esse per se subsistens), enquanto todas as criaturas possuem o ser por participação. Isso significa que nenhum ente criado existe por si mesmo, mas apenas porque recebe o ser de Deus. Esse ser não é comunicado de modo uniforme, mas segundo diversos graus de intensidade.

Essa participação resolve a questão do porquê as criaturas existem sem serem Deus. Elas têm o ser, mas não são o Ser. Isso significa que Deus não é um ente entre outros, mas o fundamento mesmo do ser de todos os entes.

b) Participação da Forma (Participatio Formae)

Outro tipo de participação ocorre dentro do mundo criado: uma substância pode participar de um atributo ou perfeição sem esgotá-la. Por exemplo, o homem participa da sabedoria divina de maneira limitada. Isso explica a diversidade dos entes e suas diferentes perfeições.

2.4. A Participação e a Hierarquia do Ser

Se o ser é participado, isso implica uma hierarquia ontológica:

  • Deus é o Ser absoluto, sem limitação ou composição.
  • Os anjos possuem um grau mais elevado de participação do ser, pois sua forma não está unida à matéria.
  • Os homens possuem o ser de modo inferior, pois estão unidos à matéria.
  • Os seres irracionais e os seres inanimados participam do ser em graus ainda menores.

Essa hierarquia é essencial para a metafísica cristã, pois fundamenta a ordem do universo e sua dependência de Deus.

A participação explica como o ser é comunicado sem que Deus perca sua transcendência. Ela mostra que todas as criaturas refletem Deus de modo analógico e hierárquico, recebendo o ser conforme sua capacidade. Esse princípio sustenta a doutrina da criação, a teologia do ser e a ordem da realidade, permitindo compreender a multiplicidade sem comprometer a unidade do Ser absoluto.

3. O Ser como Analogado Primeiro

A doutrina do ser como analogado primeiro é um princípio fundamental da metafísica tomista, pois resolve a questão de como o termo "ser" pode ser atribuído tanto a Deus quanto às criaturas sem cair em univocidade (identificação absoluta) ou equivocidade (diferença total de significado). Sua compreensão é, também, fundamental para captarmos com maior perfeição o conceito de Virtus Essendi.

O termo analogado primeiro refere-se ao ente que é a fonte e a medida do conceito que se aplica aos demais. No caso do ser, Deus é o analogado primeiro, ou seja, aquele que possui o ser por essência (ipsum esse subsistens), enquanto todas as criaturas possuem o ser por participação.

3.1. A Analogicidade do Ser

Na metafísica tomista, o ser (esse) se diz de muitas maneiras (ens multipliciter dicitur), mas sempre com uma referência ordenada a um princípio. O ser não é um conceito unívoco, pois Deus e as criaturas não existem da mesma forma; tampouco é equívoco, pois, se fosse, não poderíamos conhecer nada sobre Deus. Assim, resta a analogia como a única via adequada para falar do ser.

Tomás de Aquino distingue três tipos principais de analogia:

  • Analogia de atribuição: Um termo é atribuído a várias coisas, mas com referência a um único princípio. Exemplo: "saudável" se diz do animal (que tem saúde) e do remédio (que causa saúde). No caso do ser, Deus é ens per essentiam, enquanto as criaturas são entes por participação.
  • Analogia de proporcionalidade própria: As realidades analogadas possuem uma relação semelhante em diferentes ordens. Exemplo: a visão nos olhos é para o homem o que a inteligência é para a alma. Do mesmo modo, Deus possui o ser de maneira infinita, enquanto as criaturas possuem o ser de modo finito, mas mantendo uma certa proporção.
  • Analogia de proporcionalidade imprópria: Um termo é usado por semelhança, mas sem uma relação intrínseca (como chamar Deus de "leão" por sua força).

A relação entre Deus e as criaturas é melhor expressa pela analogia de atribuição e pela analogia de proporcionalidade própria, pois as criaturas possuem o ser em referência ao Ser absoluto.

3.2. Deus como Analogado Primeiro do Ser

Se o ser se diz de muitas maneiras, deve haver um princípio que funda essa multiplicidade e serve de referência. Esse princípio é Deus, pois Ele é o único ser que existe por essência, enquanto todos os demais seres existem por participação. Assim:

  • Deus é por sua própria natureza (Ipsum Esse per se Subsistens).
  • As criaturas têm o ser, mas de modo recebido e limitado.
  • Deus não apenas tem o ser, mas é o próprio Ser.

Essa relação hierárquica implica que Deus não é um ente ao lado dos demais entes, mas o próprio ato de ser, que se comunica às criaturas de modo analógico.

3.3. Consequências Metafísicas

A doutrina do ser como analogado primeiro tem profundas consequências para a metafísica e a teologia:

  • Explica a unidade do ser sem cair no panteísmo: Se o ser fosse unívoco, Deus e as criaturas seriam idênticos. Se fosse equívoco, nada poderíamos dizer de Deus. A analogia permite reconhecer que Deus é o Ser absoluto e que as criaturas possuem o ser de maneira participada.
  • Fundamenta a hierarquia do ser: Sendo Deus o Ser por excelência, todos os entes participam do ser em diferentes graus, o que estabelece uma estrutura ordenada na criação.
  • Permite a linguagem teológica: Podemos falar de Deus a partir das criaturas, mas sempre reconhecendo que nossos conceitos são analogicamente proporcionados e não idênticos à realidade divina.

Deus é o analogado primeiro do ser porque é a fonte absoluta do ser, ao qual todas as criaturas referem-se de modo participado. Isso resolve a questão da unidade e diversidade do ser e permite um conhecimento proporcional e ordenado de Deus e da realidade criada.

4. O conceito de Virtus Essendi

O conceito de Virtus Essendi, conforme já dito, pode ser traduzido como "força do ser" ou "intensidade do ser". Ele expressa a ideia de que o ser (esse) não é um atributo uniforme nos entes criados, mas sim participado em diferentes graus de intensidade.

Essa noção é essencial para compreender a hierarquia do ser, a relação entre Deus e as criaturas e a ordem teleológica da criação

Em termos simples, a Virtus Essendi mostra que alguns entes possuem mais ser do que outros, não em quantidade extensiva, mas em perfeição ontológica.

4.1 O Princípio da Participação no Ser

Santo Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles e o Neoplatonismo, ensina que todos os entes possuem o ser por participação, pois nenhum ente criado tem o ser por essência. Apenas Deus, o Ipsum Esse Subsistens, é o próprio ser por natureza.

Os entes criados recebem o ser de Deus e o possuem de maneira limitada e finita. Isso significa que há diferentes intensidades do ser, pois a existência não é dada igualmente a todas as coisas.

4.2 O Ser como Intensidade e Atualidade

A metafísica tomista define o ser como um ato puro, que dá realidade às essências. Contudo, o ser pode ser participado de maneira mais ou menos intensa, de acordo com a capacidade ontológica do ente.

  • Os anjos possuem o ser de forma mais intensa do que os humanos, pois são seres espirituais puros.
  • Os homens possuem uma intensidade menor de ser porque sua existência é limitada pela materialidade.
  • Os animais, plantas e seres inanimados possuem o ser em graus ainda menores.

Dessa forma, a Virtus Essendi explica por que há uma ordem hierárquica no ser, sem que isso implique divisões arbitrárias.


4.3. A Hierarquia do Ser e a Virtus Essendi

A gradação do ser implica que a realidade é ordenada de forma hierárquica:

  1. Deus (Ipsum Esse Subsistens) – A plenitude absoluta do ser, sem limitação.
  2. Os Anjos – Seres espirituais puros, com um grau superior de ser, pois não estão ligados à matéria.
  3. Os Homens – Compostos de alma e corpo, participam do ser de maneira intermediária.
  4. Os Animais – Seres materiais, com vida sensitiva, mas sem intelecto racional.
  5. As Plantas – Possuem apenas vida vegetativa, com um grau ainda menor de ser.
  6. Os Seres Inanimados – Elementos materiais que possuem o ser apenas de maneira fundamental, sem vida ou intelecto.

4.3.1 O Ser como Intensidade Qualitativa

A hierarquia do ser não significa que Deus dá uma "quantidade" maior ou menor de ser a cada coisa, mas sim que o ser é recebido com diferentes graus de intensidade e perfeição.

Por exemplo:

  • Um homem sábio não tem mais "quantidade" de sabedoria do que um homem ignorante, mas sim uma maior perfeição na posse do conhecimento.
  • Da mesma forma, um anjo não tem "mais" ser do que um ser humano no sentido quantitativo, mas possui um grau de existência mais perfeito.

A Virtus Essendi, portanto, qualifica a existência, mostrando que os entes não apenas "existem", mas existem em diferentes modos de plenitude e atualidade.


4.4. A Virtus Essendi e a Criação Divina

4.4.1 Deus como Fonte de Toda Intensidade do Ser

Deus, sendo o próprio ser subsistente, é a fonte absoluta do ser e confere ser às criaturas conforme a ordem da criação.

Isso significa que:

  1. Tudo o que existe participa do ser divino.
  2. A participação ocorre em graus diferentes, conforme a natureza do ente.
  3. Nenhum ente pode existir sem receber o ser de Deus.

A Virtus Essendi está diretamente ligada à contingência da criação, pois mostra que:

  • A existência das criaturas não é necessária, mas dada por Deus livremente.
  • O ser não é algo absoluto nos entes, mas recebido segundo sua capacidade ontológica.

4.4.2 O Mal como Privação da Intensidade do Ser

Como consequência, São Tomás define o mal como privação do ser (privatio boni).

O mal não é um ente positivo, mas uma deficiência no modo de participação do ser. Um ente é imperfeito não porque lhe falta ser absoluto, mas porque recebe o ser de maneira limitada.

A cegueira, por exemplo, não é um ente positivo, mas uma privação da capacidade visual. O pecado não é um ente em si mesmo, mas a privação do reto ordenamento da vontade ao bem.

Assim, a Virtus Essendi explica a presença do mal e da imperfeição no mundo sem comprometer a perfeição absoluta de Deus.


4.5. Relação da Virtus Essendi com a Lei Natural e a Moralidade

A lei natural, segundo Tomás de Aquino, é baseada na ordem do ser. Isso significa que:

  1. Os entes devem agir conforme sua natureza.
  2. Quanto mais algo se aproxima do seu fim próprio, mais plenamente participa do ser.
  3. A moralidade se baseia na intensificação da participação no ser.

Por isso, a Virtus Essendi também fundamenta a moralidade objetiva: O homem é um ser racional. Logo, deve agir racionalmente. O pecado é uma degradação no grau de participação do ser, pois afasta o homem do fim último, que é Deus.

Dessa forma, a ordem moral não é arbitrária, mas fundamentada na estrutura ontológica da criação.


4.6. Conclusão

A Virtus Essendi é um conceito fundamental da metafísica tomista, pois explica:

  • Por que os entes possuem graus diferentes de ser.
  • Como a criação é hierarquicamente ordenada.
  • Por que Deus é a fonte absoluta da existência.
  • Como o mal é entendido como privação do ser.
  • Como a moralidade decorre da intensificação do ser.

Esse princípio confirma que o ser não é uniforme, mas intensivo e hierárquico, e que toda a criação está ordenada à plenitude do ser em Deus. Assim, a Virtus Essendi reafirma a visão tomista de um universo racionalmente estruturado, no qual cada ente participa do ser segundo sua capacidade ontológica, tendo Deus como causa primeira e fim último.

5. A Razão Natural e a Chegada ao Conceito de Virtus Essendi

A razão natural, sem recorrer à revelação, pode chegar ao conceito de virtus essendi (força do ser ou intensidade do ser) por meio de uma análise metafísica do ato de ser (actus essendi), da hierarquia dos entes e da estrutura participativa da realidade.

Para demonstrar isso, devemos seguir um percurso lógico que parte da experiência sensível e se eleva à consideração da ordem ontológica e da causalidade transcendental. O método é o mesmo seguido por Aristóteles e Tomás de Aquino: da experiência à metafísica, da multiplicidade à unidade, do efeito à causa primeira.


5.1. O Ponto de Partida: A Percepção da Diversidade e da Hierarquia no Ser

O primeiro dado que a razão natural percebe é a multiplicidade dos entes e a desigualdade entre eles. No mundo, há uma variedade de seres que possuem diferentes graus de perfeição:

  • Um ser humano tem maior dignidade e capacidade de ação do que um animal.
  • Um animal tem mais perfeição do que uma planta, pois pode sentir e se mover.
  • Uma planta, por sua vez, possui vida, enquanto uma pedra não.

Essa gradação de perfeições sugere que o ser não se manifesta do mesmo modo em todas as realidades, mas com diferentes intensidades. Isso leva à pergunta: por que há essa variação no modo de ser dos entes?


5.2. A Necessidade de um Princípio Distintivo: A Participação no Ser

Se há diferentes graus de perfeição nos entes, deve haver um princípio metafísico que explique essa variação. Ora, todos os entes são, mas não do mesmo modo. Isso indica que o ser (esse) pode ser recebido de formas diversas.

A razão percebe, então, que:

  1. Nenhum ente finito tem o ser por essência, pois pode não existir.
  2. Se o ser não é próprio de nenhum ente criado, então deve ser recebido de outro.
  3. Como os entes são diferentes entre si, a recepção do ser não ocorre de modo uniforme, mas segundo uma certa medida e intensidade.

Essa conclusão leva à noção de virtus essendi: os entes não apenas existem, mas existem com maior ou menor plenitude conforme sua capacidade de participação no ser.


5.3. A Hierarquia do Ser e a Causalidade Transcendental

A observação da hierarquia dos entes conduz à necessidade de um primeiro princípio do ser. Se os entes possuem diferentes graus de ser, então deve haver um fundamento último que explique essa ordenação.

Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, demonstra que:

  1. Todo ente que não tem o ser por essência deve recebê-lo de outro.
  2. Essa comunicação do ser não pode se dar ao infinito, pois uma série infinita de causas subordinadas não se sustentaria sem um primeiro princípio.
  3. Esse primeiro princípio deve ser o ipsum esse per se subsistens, isto é, Aquele cujo ser é idêntico à sua essência: Deus.

Portanto, a razão natural conclui que todos os entes participam do Ser divino e o fazem com diferentes graus de intensidade. Isso confirma a noção de que há um princípio metafísico que regula essa participação: a virtus essendi.


5.4. A Razão Natural e a Intensidade do Ser

O conceito de virtus essendi não apenas explica a hierarquia do ser, mas também fundamenta diversas observações que a razão natural pode fazer:

  • Os entes mais perfeitos possuem maior capacidade de ação. O homem pode conhecer, o animal pode sentir, a planta pode crescer, e um mineral apenas ocupa espaço. Isso sugere uma intensificação do ser conforme a perfeição do ente.
  • A ordem da causalidade exige um Ser supremo. Se há graus de ser, deve haver um Ser máximo que possua o ser em plenitude. Esse é o argumento do grau de perfeição, um dos Cinco Caminhos de Tomás de Aquino.
  • O ser se comunica, mas de forma desigual. Os entes recebem o ser segundo sua capacidade própria, o que significa que há uma força do ser (virtus essendi) que regula essa participação.

5.5. Conclusão

A razão natural chega ao conceito de virtus essendi ao perceber a gradação do ser nos entes e a necessidade de um princípio que explique essa variação. A partir da hierarquia dos entes e da participação no ser, a mente racional compreende que o ser não é simplesmente um dado uniforme, mas se manifesta de modo intensivo e hierárquico.

Essa conclusão, obtida pela metafísica, é confirmada pela teologia cristã, que reconhece em Deus a plenitude absoluta do ser e nas criaturas uma participação ordenada nessa plenitude.

6. A Analogia da Virtus Essendi com o Vitral

Virtus Essendi, ou intensidade do ser, pode ser comparada a um vitral iluminado pelo sol. Assim como um vitral não possui luz própria, mas participa da luz do sol de maneira variada, os entes criados não possuem o ser por si mesmos, mas o recebem de Deus em diferentes intensidades.


6.1. Deus como o Sol, Fonte Absoluta da Luz e do Ser

Na analogia, Deus pode ser comparado ao Sol, que é a fonte absoluta de luz. Assim como o Sol não recebe sua luz de nenhum outro astro, mas brilha por si mesmo, Deus não recebe o ser de nenhuma outra causa, mas é o próprio Ser subsistente (Ipsum Esse Subsistens).

  • Deus é a plenitude infinita do ser, assim como o Sol é a fonte plena da luz.
  • Nada pode existir sem participar do ser divino, assim como nenhum vitral pode ser iluminado sem a luz do Sol.

6.2. Os Entes Criados como Vitrais de Diferentes Cores e Intensidades

Os entes criados são comparáveis aos diferentes pedaços de vidro de um vitral. Cada pedaço tem:

  • Uma cor e transparência específica, que determina quanto e como ele recebe a luz.
  • Um grau diferente de luminosidade, dependendo da sua natureza.

6.2.1. A Hierarquia do Ser no Vitral

  1. Os anjos são como os vidros mais puros e translúcidos, permitindo uma maior passagem da luz.
  2. Os seres humanos são como vidros coloridos, permitindo a luz, mas de maneira mais limitada.
  3. Os animais e plantas são como vidros mais opacos, recebendo pouca luz.
  4. Os seres inanimados são como os vidros mais escuros, nos quais a luz brilha minimamente.

Assim, os entes criados não possuem o ser igualmente, mas de acordo com sua capacidade de recebê-lo.


6. 3. O Mal como a Oclusão da Luz

Na analogia do vitral, o mal pode ser comparado a:

  • Uma sujeira ou rachadura no vidro, que impede a luz de passar corretamente.
  • Uma obstrução que diminui a intensidade da luminosidade, sem destruir a luz em si.

Assim, o mal não é um ser positivo, mas uma privação da plenitude do ser (privatio boni).

  • O pecado no homem ofusca sua participação no ser divino, assim como um vidro sujo bloqueia a luz.
  • A graça purifica a alma, permitindo que ela reflita a luz divina com mais intensidade.

6. 4. A "Vocação" do Ser: Refletir a Luz com Máxima Intensidade

O propósito último de cada ente é participar da luz divina o mais plenamente possível.

  • O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é chamado a remover as impurezas do seu ser (vícios, ignorância, pecado) para refletir melhor a luz divina.
  • Os santos são como vidros limpos e cristalinos, permitindo que a luz divina passe através deles com intensidade máxima.

Essa analogia mostra que a criação inteira existe para refletir, de diferentes maneiras, a perfeição do Ser absoluto.

Assim como o vitral só pode brilhar porque recebe a luz do Sol, os entes só podem existir porque participam do ser de Deus. A Virtus Essendi explica por que alguns refletem o ser com maior plenitude e perfeição, enquanto outros possuem uma participação mais limitada.

A vocação última de toda criatura é, portanto, purificar-se e tornar-se um vitral cada vez mais translúcido, refletindo a máxima intensidade do ser em Deus.

7. Conclusão

A doutrina da virtus essendi, isto é, da intensidade ou força do ser, ocupa lugar central na metafísica tomista ao explicar a estrutura hierárquica da realidade criada e sua dependência contínua do Ser absoluto, que é Deus. Ela nos permite compreender que o ser não é distribuído de forma uniforme entre os entes, mas recebido por participação e segundo a capacidade de cada natureza.

Por esse princípio, vemos que há graus objetivos de perfeição no ser: alguns entes participam mais plenamente da atualidade do ser, enquanto outros o recebem de modo mais limitado. Essa gradação não é meramente acidental, mas revela uma ordem inteligível que remete à Causa Primeira — o Ipsum Esse Per Se Subsistens — que é a fonte de todo ser e atualidade.

A analogia do vitral iluminado pelo sol mostra com clareza sensível essa realidade: como os diversos fragmentos de vidro transmitem a luz em intensidades e cores diversas, assim também os entes refletem o ser divino em proporções distintas. E como a luz depende do Sol para existir, assim os entes dependem de Deus para participar do ser.

Além disso, a noção de virtus essendi lança luz sobre a moralidade, pois o bem moral consiste precisamente em uma conformidade com a ordem do ser. A lei natural e a teleologia que regem a ação humana baseiam-se na intensificação da participação no ser, conduzindo o ente racional à sua plenitude.

Portanto, a virtus essendi não é apenas um conceito abstrato, mas uma chave de leitura da realidade criada e um fundamento da doutrina da participação, da ordem do universo e da via para Deus. Ela confirma a centralidade do ser na filosofia tomista e aponta para o Criador como fonte e termo de toda perfeição. Retomar esse princípio é, portanto, essencial para restaurar uma metafísica do real, contra os reducionismos modernos que obscurecem a inteligibilidade do ser e a transcendência do absoluto.

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