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A Cruz: Um Escândalo para a mentalidade judaica do Século I

A compreensão das expectativas religiosas do judaísmo no século I é fundamental para situar historicamente a figura de Jesus de Nazaré. A fé cristã nascente confrontou essas esperanças não apenas com uma novidade, mas com uma aparente contradição: a proclamação de um Messias crucificado — algo absolutamente impensável para o imaginário judeu da época.

Neste artigo, examinaremos de forma sistemática:

  1. As diversas figuras messiânicas esperadas.
  2. O papel escatológico do Messias.
  3. A expectativa da ressurreição dos mortos.
  4. As fontes documentais dessa esperança.
“Crucifixo”, quadro de Alonso Cano.


1. Contexto Histórico-Religioso do Judaísmo no Século I

O século I foi um período de intensa agitação social e fermento religioso entre os judeus da Palestina. Após séculos de dominação estrangeira — persas, gregos, asmoneus, romanos —, cresceu o anseio por uma intervenção divina na história.

O domínio romano da Judeia (desde 63 a.C., com Pompeu) intensificou o sentimento de humilhação e fomentou a expectativa de um libertador enviado por Deus, especialmente entre grupos como os zelotes e os fariseus. A opressão, os tributos romanos, a presença de tropas estrangeiras e a corrupção do sacerdócio aumentavam a tensão apocalíptica.


2. As Figuras Messiânicas Esperadas

A palavra "Messias" (do hebraico māšîaḥ, “ungido”) designava, originalmente, qualquer pessoa consagrada a uma missão divina, especialmente reis, sacerdotes e profetas. No século I, porém, o termo assumiu uma carga escatológica específica.

2.1. O Messias Davídico: Rei Libertador

A expectativa mais difundida era a de um Messias real, descendente de Davi, que restauraria a monarquia israelita. Ele seria um guerreiro justo e piedoso, derrotaria os inimigos de Israel, purificaria o Templo e traria paz e justiça.

  • Fonte bíblica: 2Sm 7,12-16; Sl 2; Sl 72; Is 11,1-9; Jr 23,5-6.
  • Exemplo extrabíblico: Salmos de Salomão 17:21-32 descrevem um rei davídico ideal que purifica Jerusalém e destrói os gentios opressores.

“E ele expulsará os pecadores do reino, e destruirá com o sopro de sua boca a injustiça, e fará com que a nação seja santificada pelo Senhor.”
(Salmos de Salomão, 17,27)

2.2. O Messias Sacerdotal: da linhagem de Arão

Nos Manuscritos do Mar Morto, especialmente em Qumran (região dos essênios), encontramos a expectativa de dois Messias:

  • Um Messias de Arão, figura sacerdotal que restauraria o culto legítimo.
  • Um Messias de Israel, de caráter régio.

“Eles não se afastarão de nenhum dos conselhos da Torá... até que venha o Profeta e os Ungidos de Arão e de Israel.”
(1QS, Regra da Comunidade, IX, 11)

Este dualismo mostra que a imagem messiânica estava longe de ser monolítica. As funções régia e cultual estavam divididas.

2.3. O Profeta Escatológico: Um novo Moisés

Alguns grupos aguardavam um novo Moisés, profetizado em Dt 18,15: “O Senhor teu Deus suscitará um profeta como eu...”.

Esse profeta teria autoridade para interpretar a Lei, realizar sinais e guiar o povo em um novo êxodo espiritual.

Cf. Jo 6,14: “Este é verdadeiramente o profeta que devia vir ao mundo.”

2.4. O “Filho do Homem” de Daniel: Figura celeste gloriosa

Em Daniel 7,13-14 surge uma figura enigmática: “um como filho de homem, vindo sobre as nuvens do céu”, a quem é dado poder e domínio eterno.

Esse personagem foi interpretado por muitos judeus como uma figura celeste, gloriosa, talvez angelical, que receberia o reino dos santos.

Cf. 1Enoque 46–48: o “Filho do Homem” é pré-existente, juiz escatológico e glorificado.


3. A Expectativa da Ressurreição

A ideia de ressurreição corporal não era universal no judaísmo, mas era predominante entre os fariseus, a seita mais popular (cf. At 23,8). Ela aparece explicitamente em:

  • Dn 12,2: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, outros para a vergonha e horror eterno.”
  • 2Mac 7,14: Os mártires proclamam: “O Rei do universo nos ressuscitará para a vida eterna.”

Contudo, esta ressurreição era esperada no fim dos tempos, como evento coletivo, e não individual ou antecipado.

“Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia” (Marta, em Jo 11,24).


4. Características Comuns das Esperanças Messiânicas

Apesar da diversidade, havia elementos comuns nas expectativas:

  • Caráter nacionalista: o Messias traria libertação de Israel dos opressores (especialmente Roma).
  • Pureza e justiça: ele restauraria a Torá, purificaria o culto e puniria os ímpios.
  • Sinais miraculosos: esperava-se que operasse prodígios, à maneira de Moisés ou Elias.
  • Triunfalismo escatológico: não havia espaço para fracasso, morte ou humilhação do Messias.

Como observa Géza Vermes:

“A concepção tradicional do Messias era de um libertador humano, descendente de Davi, que triunfaria sobre os inimigos de Israel.”
(Jesus the Jew, London: SCM Press, 1973, p. 135)


5. Fontes primárias atestando as expectativas messiânicas do Século I

5.1. Pseudepígrafos Judaicos (Literatura Intertestamentária)

5.1.1. Salmos de Salomão 17 (século I a.C.)

“Vê, Senhor, e levanta-lhes o seu rei, o filho de Davi... que expulse os pecadores... que quebre o jugo dos gentios... que purifique Jerusalém.”
(vv. 21-25)

Confirma: uma esperança messiânica fortemente nacionalista, centrada na restauração política e moral.


5.1.2. 1 Enoque 37–71 (As Parábolas)

“Este é o Filho do Homem... diante de quem todos os reis e poderosos cairão por terra... Ele destruirá os pecadores pela palavra de sua boca.”
(1En 62,5–9)

Confirma: a expectativa de um Messias glorificado, juiz escatológico, sem qualquer sinal de sofrimento ou morte.


5.2. Manuscritos do Mar Morto (Qumran)

5.2.1. Regra da Comunidade (1QS IX, 11)

“Até que venha o profeta e os Messias de Arão e de Israel.”

Confirma: a crença em dois Messias — um sacerdotal (Arão) e outro régio (Israel) — mas nenhum dos dois é retratado como sofredor ou expiador.


5.3. Testamento de Levi (Manuscrito de Damasco, CD XII, 23 – XIII, 1)

“E no tempo de sua visita, o Messias de Arão e Israel se levantarão...”

Confirma: reafirmação do duplo messianismo e do caráter escatológico e triunfante da sua missão.


5.4. Flávio Josefo (37–100 d.C.)

5.4.1. Guerras Judaicas, VI, 5,4 (§ 312-315)

“O que mais os animava à guerra era uma profecia ambígua que encontravam nas Escrituras... que alguém da Judeia se tornaria governante do mundo.”

Comentário: Josefo reconhece que os judeus esperavam um governante mundial vindo de Israel — provavelmente uma alusão ao “Filho do Homem” de Daniel 7. Essa expectativa é claramente temporal e triunfante.


5.5. Targumim (traduções e paráfrases aramaicas da Bíblia hebraica)

5.5.1. Targum Isaías 11,1

“Um rei sairá dos filhos de Jessé... sobre ele repousará o Espírito de profecia... julgará com justiça e matará o ímpio com a palavra de sua boca.”

Confirma: A figura do rei messiânico é um guerreiro justo e portador do Espírito. Nenhuma menção à sua morte.


5.6. Mishna e Tradição Rabínica Primitiva

5.6.1. Sanhedrin 98a (Talmude Babilônico)

“Qual é o nome do Messias?... Diz o mestre: o Messias se senta às portas de Roma... e quando vir a redenção chegará.”

Embora posterior (séc. III–V), conserva tradições orais anteriores. Retrata o Messias como alguém oculto, mas aguardado para ação redentora nacional. O sofrimento do Messias (Messias ben José) aparece em alguns textos rabínicos, mas somente como figura auxiliar, não como o Messias definitivo (ben Davi).

6. A Incredulidade dos Discípulos

1. O escândalo da Paixão

Mesmo após três anúncios explícitos de sua Paixão (cf. Mt 16,21; 17,22; 20,18), os apóstolos não compreenderam nem aceitaram essa realidade. Pedro chegou a repreender Jesus: “Deus não o permita, Senhor! Isso não te acontecerá!” (Mt 16,22).

Após a morte de Jesus, os discípulos:

  • Fugiram e se esconderam (Mc 14,50).
  • Duvidaram dos primeiros testemunhos (Lc 24,11).
  • Demonstraram desânimo: “Nós esperávamos que fosse ele quem redimiria Israel.” (Lc 24,21).
  • Voltaram à vida antiga (Jo 21,3).

A ressurreição não era uma expectativa programada, mas um acontecimento imprevisível que rompeu todas as esperanças naturais.


7. A Impossibilidade de uma Invenção Humana

7.1. Paralelos Históricos: Outros “Messias” fracassados

O historiador judeu Flávio Josefo narra diversos casos de “pretensos messias” (cf. Antiguidades Judaicas, XX, 97-99). Quando eram mortos, suas seitas desapareciam. O caso de Jesus, porém, é único: depois de sua morte ignominiosa, o movimento explode em crescimento e ousadia.

Como disse o fariseu Gamaliel:
“Se este plano ou obra vem de homens, será destruído; mas, se vem de Deus, não podereis destruí-lo” (At 5,38-39).

7.2. Psicologia e Sociologia Apostólica

  • Os apóstolos não tinham prestígio, nem recursos, nem apoio das autoridades.
  • Pregaram contra a lógica de sua época, em nome de um homem que fora executado como criminoso.
  • Suportaram prisões, açoites, torturas e morte (cf. Atos dos Apóstolos; 2Cor 11).
  • Tudo isso, não por ideias filosóficas, mas por um acontecimento concreto e sensível: a ressurreição corporal de Cristo.

Edward Feser argumenta com justeza:

“É irracional pensar que pescadores ignorantes, atemorizados e desiludidos tenham fabricado um mito tão teologicamente ousado e o tenham sustentado até a morte por décadas”


8. O Testemunho Histórico e Racional da Ressurreição

Brant Pitre, em seu livro Em Defesa do Cristo, demonstra que, historicamente, nenhuma seita judaica jamais inventou a ideia de um Messias ressuscitado antes da ressurreição geral no fim dos tempos (cf. Dn 12,2). A ideia de que um só homem tivesse ressuscitado no meio da história era impensável para o judaísmo.

A transformação dos apóstolos e a expansão da Igreja nascem do impacto real da ressurreição — único fato capaz de explicar teologicamente e historicamente o surgimento do cristianismo.


9. Conclusão: O Fato que Mudou o Mundo

A cruz, que era o maior escândalo, tornou-se o sinal da vitória, porque foi seguida da ressurreição. Se Jesus não ressuscitou:

  • Os discípulos teriam se dispersado como os de outros falsos messias.
  • A pregação cristã jamais teria começado.
  • Nenhum deles teria morrido por uma mentira inventada.

Mas, porque Ele ressuscitou verdadeiramente, como afirmam as testemunhas (cf. 1Cor 15,3-8), a Igreja existe, a fé se espalhou, e os corações foram convertidos.

Como diz Santo Tomás:

“A ressurreição de Cristo é a causa exemplar da nossa ressurreição espiritual, pela fé e justificação” (S. Th., III, q.56, a.1).

A ressurreição não é um mito nem uma criação dos discípulos, mas um evento histórico real, absolutamente inesperado, que confere sentido à cruz e inaugura a era da graça.


“E ao terceiro dia, ressuscitou dos mortos, segundo as Escrituras.” (Credo Niceno-Constantinopolitano)

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