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A Tese dos Evangelhos Anônimos

Uma das afirmações mais comuns entre estudiosos críticos do Novo Testamento é a de que os quatro Evangelhos foram originalmente escritos de forma anônima, sem autoria atribuída. Segundo essa tese, os nomes "Mateus", "Marcos", "Lucas" e "João" teriam sido adicionados apenas no final do século II, como forma de dar autoridade a esses textos.

A tese é frequentemente usada para sustentar o argumento segundo o qual os Evangelhos não foram escritos por testemunhas oculares da vida de Cristo, e, portanto, não narram o que de fato aconteceu. 

Críticos que sustentam esta tese alegam que os Evangelhos são apenas compilações de lendas a respeito de Jesus, feitos por autores desconhecidos. 

Em outras palavras, tal teoria é frequentemente usada como argumento para minar a autoridade dos Evangelhos. Contudo, ela padece de sérios problemas, que veremos ao longo deste artigo.

Imagem do Papiro 4, contendo o Evangelho de Lucas. É a cópia mais antiga dos evangelhos onde o cabeçalho, intacto, pode ser visto com a devida atribuição ao seu respectivo autor.
Este manuscrito é datado paleograficamente do final do século II ou início do século III (c. 175–225 d.C.).

1. A Base da Tese

Os defensores da tese dos Evangelhos anônimos, como Bart Ehrman, apresentam os seguintes argumentos:

  1. Os títulos foram acrescentados depois: Segundo essa visão, os Evangelhos circulavam sem qualquer nome ligado a eles até cerca de 100 anos após sua composição.
  2. Os autores não se identificam no próprio texto: Diferente de algumas cartas de Paulo, os Evangelhos não começam com uma declaração explícita de autoria.
  3. A prática da escrita anônima era comum: Alguns críticos comparam os Evangelhos a textos da tradição oral ou da literatura folclórica, que eram transmitidos sem autoria fixa.
  4. A atribuição posterior serviu para dar autoridade: O argumento final é que a Igreja primitiva, ao escolher nomes apostólicos ou ligados aos apóstolos, buscava legitimar os Evangelhos perante comunidades cristãs.

Brant Pitre, em The Case for Jesus, desmonta a tese de que os Evangelhos foram originalmente anônimos utilizando três linhas principais de argumentação: (1) a inexistência de manuscritos anônimos, (2) o testemunho unânime dos Pais da Igreja e (3) a comparação com outros escritos antigos do mesmo gênero literário.


1. Não Existem Manuscritos Anônimos

O primeiro e mais contundente argumento de Pitre é que não há qualquer evidência manuscrita de que os Evangelhos circularam sem os nomes dos autores.

Analisando os Manuscritos Antigos

Os manuscritos gregos mais antigos dos Evangelhos – incluindo Papiro 4 (Mt), Papiro 75 (Lc) e Papiro 66 (Jo)já trazem os títulos completos, como “Evangelho segundo Mateus” ou “Evangelho segundo João”

Isso significa que, desde a época mais remota de sua transmissão, os Evangelhos foram copiados e preservados com autoria identificada.

Nenhum manuscrito dos Evangelhos já encontrado foi anônimo. Se os Evangelhos fossem originalmente anônimos, seria esperado que houvesse pelo menos um manuscrito sem título, mas isso não ocorre.

A crítica textual estabelece que, quando há variações em títulos de manuscritos antigos, é possível detectar mudanças feitas por copistas posteriores. 

Mas, no caso dos Evangelhos, todas as variações nos títulos mantêm os mesmos quatro nomes tradicionais: Mateus, Marcos, Lucas e João.

Comparação com a Epístola aos Hebreus

O contraste entre os Evangelhos e a Epístola aos Hebreus reforça ainda mais esse argumento.

  • A Epístola aos Hebreus é de fato anônima em seus manuscritos antigos, o que resultou em debates entre os cristãos primitivos sobre sua autoria (Paulo? Barnabé? Apolo?).
  • Os Evangelhos, por outro lado, nunca aparecem sem autoria. Isso demonstra que a tradição da Igreja nunca teve dúvidas sobre quem os escreveu.

Em resumo, se os Evangelhos fossem realmente anônimos por cerca de 100 anos, deveríamos esperar encontrar alguns manuscritos sem os nomes dos autores ou até mesmo cópias divergentes atribuindo-os a nomes diferentes. 

Mas isso nunca ocorreu.


2. O Testemunho Unânime dos Pais da Igreja

Os primeiros cristãos – aqueles que estavam temporalmente mais próximos dos autores originais dos  Evangelhos – nunca questionaram a autoria dos mesmos.

Entre os testemunhos mais importantes, destacam-se:

1. Papias de Hierápolis (c. 60–130 d.C.)

Papias foi bispo de Hierápolis na Frígia (atual Turquia) e é um dos primeiros testemunhos extrabíblicos sobre os Evangelhos. Suas obras se perderam, mas trechos foram preservados por Eusébio de Cesareia (História Eclesiástica, III, 39).

Sobre Marcos:

“O presbítero costumava dizer: Marcos, tendo sido o intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, embora não em ordem, tudo o que ele [Pedro] recordava das palavras e atos do Senhor. Pois ele não ouviu o Senhor nem o acompanhou, mas mais tarde, como eu disse, ele acompanhou Pedro.”
(Eusébio, HE 3.39.15)

Sobre Mateus:

“Mateus ordenou os ditos [do Senhor] em língua hebraica, e cada um os traduziu como pôde.”
(Eusébio, HE 3.39.16)

Nota: "Língua hebraica" aqui provavelmente se refere ao aramaico. Embora o Evangelho segundo Mateus que temos hoje esteja em grego, esse testemunho indica uma tradição escrita semítica anterior.


2. Justino Mártir (c. 100–165 d.C.)

Filósofo convertido ao cristianismo, Justino escreveu várias obras apologéticas. Em seu Diálogo com Trifão, ele já menciona os Evangelhos como “Memórias dos Apóstolos” e atribui-os a autores apostólicos.

“Pois os Apóstolos, em suas Memórias, que são chamadas de Evangelhos, nos transmitiram o que Jesus ordenou a eles.”
(Diálogo com Trifão, 103.8)

“E que foi predito que Ele faria tais coisas, ouvimos nas Memórias dos Apóstolos; pois foram compostas por Seus apóstolos e por aqueles que os seguiram.”
(Diálogo com Trifão, 66)

Nota: A expressão “compostas por Seus apóstolos e por aqueles que os seguiram” corresponde exatamente à tradição de que Marcos seguiu Pedro e Lucas seguiu Paulo, enquanto Mateus e João foram apóstolos.


3. Irineu de Lyon (c. 130–202 d.C.)

Irineu foi discípulo de Policarpo, que por sua vez foi discípulo direto do apóstolo João. Em sua obra Contra as Heresias (c. 180 d.C.), ele dá um testemunho claro e sistemático sobre os quatro Evangelhos e seus autores:

“Mateus publicou entre os hebreus em sua própria língua um Evangelho escrito, enquanto Pedro e Paulo estavam pregando em Roma e fundando a Igreja ali.
Depois da partida deles, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, também nos transmitiu por escrito o que Pedro havia pregado.
Lucas, o companheiro de Paulo, registrou em um livro o Evangelho que este anunciava.
Finalmente, João, o discípulo do Senhor, aquele que repousou sobre seu peito, também publicou um Evangelho, enquanto vivia em Éfeso, na Ásia.”

(Contra as Heresias, 3.1.1)

 “É impossível que os Evangelhos sejam mais ou menos que quatro. Pois, como existem quatro regiões do mundo e quatro ventos principais, e a Igreja está espalhada por toda a Terra [...] é apropriado que haja quatro colunas que sustentam a Igreja.” (Contra as Heresias, 3.11.8)

Orígenes (c. 185–254 d.C.)

Um dos maiores teólogos da Igreja primitiva, Orígenes escreveu sobre a autoria dos Evangelhos em seu Comentário sobre o Evangelho de Mateus.

“Quanto aos quatro Evangelhos, que somente são recebidos sem contestação pela Igreja de Deus sob o céu, aprendi pela Tradição que o primeiro foi escrito por Mateus [...] Marcos compôs o segundo Evangelho segundo o que lhe contou Pedro. Lucas escreveu em terceiro lugar, de acordo com o que aprendeu com Paulo. O quarto é o de João.” (Comentário sobre Mateus citado por Eusébio, História Eclesiástica 6.25.3-6)  

Tertuliano de Cartago (c. 160–225 d.C.)

Escrevendo no Norte da África, Tertuliano defende que os Evangelhos foram compostos por apóstolos e discípulos diretos:

“Dos apóstolos, João e Mateus; dos discípulos, Marcos e Lucas.” (Contra Marcião, 4.2)

Ele enfatiza que esses Evangelhos foram sempre reconhecidos pela Igreja, ao contrário dos textos gnósticos que começavam a surgir.

Eusébio de Cesareia (c. 260–340 d.C.)

Eusébio, em sua História Eclesiástica, registra o testemunho de diversos escritores anteriores e reforça a autoria tradicional dos Evangelhos:

“Mateus, que primeiro pregou entre os hebreus, quando estava prestes a partir para outros povos, legou-lhes seu Evangelho escrito em sua própria língua.” (História Eclesiástica 3.24.6)

“Marcos, tendo sido o intérprete de Pedro, escreveu fielmente tudo o que recordava dos ensinamentos de Pedro.” (História Eclesiástica 3.39.15)

“Lucas, que acompanhava Paulo, escreveu um Evangelho aprovado por ele.” (História Eclesiástica 3.4.7)

“João, o último dos Evangelistas, escreveu seu Evangelho quando estava na Ásia, em Éfeso.” (História Eclesiástica 3.24.1)

Cânon Muratoriano (c. 170 d.C.)

Esse é o mais antigo cânon cristão conhecido, provavelmente redigido em Roma. Ele afirma:

“O terceiro Evangelho é o de Lucas [...] o médico amado escreveu em seu nome. O quarto Evangelho é o de João, um dos discípulos.” (Trecho do Fragmento Muratoriano)

Embora o começo do manuscrito esteja danificado (faltando a parte sobre Mateus e Marcos), o fragmento reconhece Lucas e João como autores apostólicos autorizados.

O Argumento da Consistência

Se os Evangelhos fossem originalmente anônimos e tivessem recebido os nomes de Mateus, Marcos, Lucas e João apenas no final do século II, deveríamos esperar encontrar alguma divergência entre os cristãos primitivos sobre quem realmente os escreveu. No entanto, não há nenhum Pai da Igreja atribuindo um Evangelho a um autor diferente.

Além disso, se a Igreja queria forjar a autoria dos Evangelhos, por que escolher Marcos e Lucas, que não foram apóstolos? 

Se o objetivo era dar mais autoridade aos textos, não faria muito mais sentido atribuir todos os Evangelhos a figuras mais centrais, como Pedro, Tiago ou até mesmo a Jesus?

A explicação mais lógica, então, não é que os nomes foram adicionados posteriormente, mas sim que os Evangelhos sempre circularam com essas atribuições, pois foram escritos por esses mesmos autores.


3. Os Evangelhos Seguem o Modelo de Biografias Antigas, Não de Narrativas Folclóricas

Críticos frequentemente afirmam que os Evangelhos foram transmitidos inicialmente como histórias orais anônimas, comparáveis a lendas e folclores.

No entanto, Pitre demonstra que os Evangelhos pertencem a um gênero literário muito específico da Antiguidade: o gênero biográfico greco-romano (bios). Esse gênero era usado para escrever sobre figuras históricas, e os autores muitas vezes não se identificavam no corpo do texto, mas a autoria era reconhecida pela tradição e preservada nos manuscritos.

No mundo greco-romano, o gênero bios (biografia) era um tipo de literatura que visava relatar a vida, os feitos, os ensinamentos e o caráter de figuras notáveis, especialmente filósofos, líderes militares ou políticos, e mestres religiosos.

Características do gênero biográfico (bios):

  • Ênfase na vida e morte do personagem principal.
  • Destaque para ações e palavras memoráveis.
  • Organização temática ou cronológica, mas com liberdade literária.
  • Intenção de formar o caráter e transmitir valores através da figura descrita.

Autores como Plutarco, Suetônio e Tácito são exemplos clássicos de escritores desse gênero.

Os Evangelhos como Biografias Antigas

Estudos acadêmicos contemporâneos — inclusive de estudiosos não cristãos — reconhecem cada vez mais que os Evangelhos se enquadram plenamente no gênero biográfico da Antiguidade.

Entre os estudiosos que sustentam isso estão:

  • Richard A. Burridge (What Are the Gospels?, 1992);
  • Craig Keener;
  • Craig Evans;
  • N. T. Wright.

Até críticos como Graham Stanton reconheceram que os Evangelhos são bios.

Os quatro Evangelhos apresentam:

  • Uma narrativa centrada na vida de um único indivíduo: Jesus de Nazaré.
  • Descrições de sua genealogia (Mateus e Lucas), ensinamentos, milagres, controvérsias, julgamento, morte e (de forma singular) ressurreição.
  • Ênfase na última semana de sua vida, típica de biografias antigas que destacavam a morte como momento de revelação do caráter.

Biografias Não Eram Publicadas de Forma Anônima

No mundo greco-romano, não era costume publicar biografias sem indicar o autor ou o sujeito retratado. Ainda que o nome do autor nem sempre estivesse no corpo do texto, o nome do biografado era conhecido desde o início, como parte essencial do propósito do escrito.

Exemplos históricos:

  • Vidas Paralelas de Plutarco: cada biografia leva o nome do personagem (Alexandre, César, etc.).
  • As Vidas dos Doze Césares, de Suetônio: biografias com identidade clara.

Nos manuscritos mais antigos dos Evangelhos, os títulos estão firmemente atestados, como:

  • Kata Matthaion ("Segundo Mateus")
  • Kata Markon ("Segundo Marcos")
  • Kata Loukan ("Segundo Lucas")
  • Kata Ioannen ("Segundo João")

Estes títulos aparecem em todos os manuscritos conhecidos desde o século II, e nunca houve uma tradição alternativa (por exemplo, nenhum manuscrito chama o Evangelho de Mateus de "Evangelho de Tomé" ou "de André").

A ausência do nome do autor dentro do texto, portanto, não significa que o livro era originalmente anônimo. No mundo antigo, era normal que um livro fosse reconhecido pelo nome do autor em sua cópia manuscrita, sem que ele precisasse se identificar na obra.

Assim, Pitre conclui que os Evangelhos seguem o padrão da biografia antiga, e não da tradição folclórica anônima.


Conclusão: O Fracasso da Tese dos Evangelhos Anônimos

A tese de que os Evangelhos foram originalmente anônimos é amplamente refutada pelos próprios dados históricos e manuscritos antigos.

  1. Não há um único manuscrito anônimo dos Evangelhos, ao contrário do que ocorre com a Epístola aos Hebreus.
  2. Os Pais da Igreja sempre atribuíram os Evangelhos aos seus autores tradicionais, sem qualquer debate ou variação.
  3. Os Evangelhos seguem o modelo das biografias antigas, nas quais a autoria era registrada na tradição manuscrita, não necessariamente no corpo do texto.

Portanto, a hipótese de que os nomes de Mateus, Marcos, Lucas e João foram “inventados” um século depois carece completamente de fundamento histórico e textual.


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