A discussão sobre como se formou o cânon do Novo Testamento e a confiabilidade dos evangelhos apócrifos está intimamente ligada à questão da historicidade da Ressurreição de Cristo. Afinal, para avaliar a ressurreição como evento histórico, é fundamental determinar quais fontes escriturísticas são fidedignas.
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Ícone do Concílio de Niceia |
Conforme já dissemos anteriormente, a confiabilidade dos Evangelhos canônicos e o testemunho ocular neles contido é um dos pilares para examinar a Ressurreição de Jesus. Neste capítulo, apresentamos uma análise cronológica e detalhada da formação do cânon do Novo Testamento, os critérios usados pelos primeiros cristãos para reconhecer textos autênticos (apostolicidade, ortodoxia, uso litúrgico, etc.), e os motivos pelos quais diversos escritos apócrifos foram excluídos.
Em seguida, comparamos a confiabilidade histórica e textual dos evangelhos apócrifos em relação aos quatro Evangelhos canônicos. Por fim, demonstramos como a seleção canônica reforça a credibilidade dos relatos da Ressurreição de Cristo, integrando essas conclusões ao objetivo apologético de confirmar que a fé na Ressurreição de Jesus se apoia em bases históricas sólidas e racionais.
1. Formação do Cânon do Novo Testamento
A formação do cânon (lista autorizada) do Novo Testamento foi um processo gradual, ocorrendo ao longo dos séculos I ao IV. Diferentemente de uma decisão arbitrária de um único concílio, o cânon emergiu do uso e consenso das comunidades cristãs primitivas.
Textos apostólicos passaram a circular já no século I: por exemplo, as cartas de São Paulo eram copiadas e compartilhadas entre as igrejas, e possivelmente já reunidas em um corpus ao final do séc. I.
No início do séc. II, evangelhos e outras obras eram lidas em cultos; por volta de 150 d.C., São Justino Mártir menciona que nos domingos lia-se “memórias dos Apóstolos” junto com os escritos proféticos do Antigo Testamento – uma clara referência aos Evangelhos, indicando sua autoridade nas assembléias cristãs.
Um fator que acelerou a definição do cânon foi a ameaça de heresias e escritos espúrios. Por volta de 140 d.C., Marcião de Sinope, um herege, propôs o primeiro “cânon” cristão conhecido: ele rejeitou todo o Antigo Testamento e aceitou apenas uma versão editada do Evangelho de Lucas e dez epístolas paulinas.
A igreja reagiu a esse desafio marcionita reconhecendo a necessidade de delimitar quais textos representavam a fé autêntica. Após Marcião, os cristãos passaram a discernir mais claramente entre os escritos alinhados à “regra” da doutrina apostólica e aqueles que deveriam ser considerados heréticos.
Em outras palavras, Marcião deu o impulso inicial para que os líderes da Igreja articulassem um cânon verdadeiro, afirmando os livros genuinamente apostólicos e rejeitando os espúrios.
Nos finais do séc. II, já vemos forte evidência de um núcleo canônico definido. Santo Ireneu de Lyon (c. 180 d.C.) afirma enfaticamente, em seu Adversus Haereses, que só há quatro Evangelhos autênticos – Mateus, Marcos, Lucas e João –, conhecidos e usados em toda a Igreja.
Ireneu chega a justificar simbolicamente este número, dizendo que é apropriado haver “quatro colunas” do Evangelho sustentando a Igreja (assim como quatro pontos cardeais), reforçando que somente estes quatro derivam dos apóstolos ou seus discípulos.
Ao mesmo tempo, Ireneu combateu vigorosamente os escritos heréticos dos gnósticos: ele menciona, por exemplo, um Evangelho de Judas usado pela seita dos cainitas, chamando-o de “livro de sua própria invenção” que distorcia a verdade e elogiava o traidor Judas. Assim, já no século II a Igreja distinguia nitidamente os Evangelhos “apostólicos” dos falsos evangelhos promovidos por grupos dissidentes.
Outra testemunha crucial é o chamado Fragmento Muratori (c. 170-200 d.C.), um dos mais antigos catálogos canônicos sobreviventes. Ele atesta que, já no fim do séc. II, existia uma coleção de escritos cristãos muito próxima ao nosso Novo Testamento completo, incluindo os quatro Evangelhos.
Apesar de algumas dúvidas persistirem em torno de alguns livros (por exemplo, algumas comunidades questionavam Apocalipse, ou determinadas Epístolas universais), a maior parte das obras que hoje compõem o Novo Testamento era amplamente aceita no séc. III.
Orígenes de Alexandria, escrevendo no início do séc. III, aparentemente conhecia os mesmos 27 livros atuais, embora notasse debates sobre alguns deles; Orígenes mesmo usou um critério de “seleção dos poucos dentre muitos” escritos cristãos.
No séc. IV, o processo se consolidou. O historiador Eusébio de Cesareia (c. 324 d.C.) classificou os livros em três grupos – reconhecidos, disputados e espúrios – refletindo o consenso de sua época. Ele confirmou que os quatro Evangelhos, Atos e as epístolas paulinas eram universalmente reconhecidos, enquanto alguns textos (como Apocalipse, 2Pedro, 2-3João, Tiago, Judas) ainda geravam debate em algumas regiões, e enumerou também uma série de obras rejeitadas por serem espúrias ou heréticas, como veremos adiante.
Pouco depois, em 367 d.C., Atanásio de Alexandria publicou sua Carta Festal anual listando os exatos 27 livros do Novo Testamento como os únicos considerados “canonizados” pela Igreja.
Essa lista de Atanásio coincide integralmente com o cânon que adotamos hoje, marcando a primeira vez que os 27 livros foram explicitamente relacionados juntos como Escritura Sagrada pela autoridade eclesiástica.
Finalmente, sínodos regionais no fim do séc. IV ratificaram formalmente essa lista. O Sínodo de Roma (382 d.C.) sob o papa Dâmaso I, seguido pelos Concílios regionais de Hipona (393) e Cartago (397), confirmaram os mesmos 27 livros do Novo Testamento.
Esses concílios essencialmente reconheceram o cânon já estabelecido pela tradição – não “criaram” o cânon do nada, mas deram carimbo oficial ao consenso que se formara organicamente. Séculos mais tarde, esse cânon seria reafirmado em concílios maiores (por exemplo, o Concílio de Florença em 1442 e o de Trento em 1546 na Igreja Católica), mas desde o século IV o elenco do Novo Testamento estava definido na prática das igrejas.
Critérios de Canonicidade
Ao longo desse processo, os Padres da Igreja e comunidades cristãs aplicaram critérios sólidos para discernir quais livros deveriam ser considerados canônicos (inspirados e normativos) e quais não. Diversos testemunhos patrísticos, explícitos ou implícitos, apontam para critérios como:
Apostolicidade: obra escrita por um apóstolo ou seu discípulo próximo, ou que remonta ao testemunho da primeira geração apostólica. Este era o critério fundamental: textos ligados à autoridade dos apóstolos (por exemplo, Mateus e João foram apóstolos; Marcos foi discípulo de Pedro; Lucas, companheiro de Paulo) receberam confiança. Se um escrito apareceu tardiamente, sob um nome falso, ou proveniente de alguém fora desse círculo, sua autoridade era suspeita. Eusébio observa, por exemplo, que nenhum escritor eclesiástico antigo havia usado evangelhos sob nome de Pedro, Tomé, Matias, etc., indicando que não vinham realmente dos apóstolos (História Eclesiástica III, 3, 1-2). O reconhecimento da inspiração divina de um livro estava atrelado em primeiro lugar à sua origem apostólica ou aprovação pelos apóstolos.
Ortodoxia: conformidade da mensagem do livro com a fé correta (regra de fé) recebida da tradição apostólica. Se o conteúdo teológico de um texto entrava em contradição com o ensinamento que a Igreja aprendeu dos apóstolos, ele era rejeitado. Escritos com doutrinas aberrantes (por exemplo, visões gnósticas de Jesus como puro espírito, ou teologias incompatíveis com a encarnação, morte expiatória e ressurreição) não poderiam ser inspirados. Como notou Eusébio, em certos livros “o pensamento e a doutrina... contrastam o quanto possível com a verdadeira ortodoxia”, prova de que “são produtos heréticos” e, portanto, devem ser rejeitados como “absurdos e ímpios” (História Eclesiástica III,25,6-7). Havia uma “regra de fé” – um conjunto de verdades fundamentais (monoteísmo, criação, encarnação, ressurreição, salvação etc.) – que servia de parâmetro.
Uso Litúrgico e Catolicidade: textos que eram lidos publicamente nas igrejas e aceitos de forma ampla (não apenas localmente) tinham mais peso para serem canônicos. Um escrito que fosse reconhecido e venerado por todas as grandes comunidades cristãs desde cedo indicava a inspiração universal. Por outro lado, livros que circularam apenas em círculos restritos, ou cuja leitura na liturgia não era costume geral, dificilmente seriam parte do cânon. Assim, os quatro Evangelhos canônicos gozavam de aceitação universal: foram citados e usados desde o início em diversas regiões (Roma, Alexandria, Antioquia etc.), ao passo que evangelhos apócrifos muitas vezes eram desconhecidos pela maioria ou restritos a seitas. A universalidade do uso andava de mãos dadas com a noção de consensus fidelium – o consenso dos fiéis sob guia dos sucessores dos apóstolos, discernindo coletivamente os textos legítimos.
Antiguidade (proximidade temporal aos apóstolos): embora não formalizado como critério separado, na prática os cristãos primitivos privilegiaram escritos da era apostólica (séc. I). Obras surgidas no séc. II ou III, fora do horizonte dos apóstolos, tinham autoridade duvidosa. Havia consciência histórica de que após os apóstolos não haveria novas Escrituras. Por isso, mesmo escritos ortodoxos e populares do séc. II – como O Pastor de Hermas ou a Epístola de Barnabé – acabaram não entrando no cânon, porque apareceram numa geração posterior, quando a revelação apostólica já estava encerrada. Em suma, somente escritos do período apostólico foram canônicos, um princípio consistente com a ideia de fundação única da Igreja sobre o alicerce apostólico.
Esses critérios não foram aplicados de forma mecânica ou matemática, mas serviram de guias discernidores. Quando todos os critérios convergiam – isto é, um livro demonstrava origem apostólica, ortodoxia de doutrina, uso antigo e amplo na Igreja –, sua canonicidade se afirmava quase naturalmente. Por exemplo, os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João satisfazem todos esses quesitos, razão pela qual sua autoridade nunca foi seriamente contestada na Igreja antiga. Em contraste, um texto como o Evangelho de Tomé surgiu mais tarde, traz ensinamentos estranhos, não era lido nas igrejas apostólicas e usurpa o nome de Tomé; logo, foi excluído.
Cabe notar que, em alguns casos, a aplicação dos critérios exigiu debate: a Epístola aos Hebreus, por exemplo, carecia de autoria clara (apostolicidade duvidosa), mas seu conteúdo era ortodoxo e edificante, e era apreciada em vários locais – acabou reconhecida no cânon pelos outros méritos. De modo similar, o Apocalipse de São João foi debatido em algumas comunidades do Oriente por questões teológicas, mas prevaleceu por sua atribuição apostólica e aceitação ocidental. Assim, a formação do cânon envolveu discernimento comunitário guiado pela Tradição e, do ponto de vista de fé, pela providência do Espírito Santo guardando a Igreja de erros.
A necessidade de um cânon definido tornou-se premente justamente porque “pretensos escritos atribuídos aos apóstolos foram surgindo” e alguns grupos tentavam adotá-los. Em resposta, os sucessores dos apóstolos catalogaram com clareza os livros verdadeiros “transmitidos segundo a tradição da Igreja” versus aqueles espúrios.
Imagem: O Codex Vaticanus (séc. IV) contém uma das mais antigas cópias completas do Novo Testamento. Códices como este atestam o cânon consolidado: percebem-se no manuscrito as colunas de texto grego contínuo dos Evangelhos e demais livros, sem inclusão de apócrifos.
Em suma, no fim do século IV o cânon do Novo Testamento – os 27 livros hoje conhecidos – estava firmemente estabelecido, tendo passado pelo crivo desses critérios nas gerações anteriores. A Igreja primitiva guardou somente os escritos que vieram dos apóstolos e que refletiam fielmente a fé recebida de Cristo, excluindo os numerosos textos que foram sendo compostos por outros grupos. A seção seguinte examinará justamente quem são esses evangelhos “excluídos” (apócrifos) e por que a Igreja os rejeitou, tanto por razões teológicas quanto históricas.
Exclusão dos Evangelhos Apócrifos: Motivos Teológicos e Históricos
Chama-se evangelhos apócrifos os diversos relatos da vida de Jesus não incluídos no cânon bíblico, escritos geralmente entre o séc. II e IV, sob nomes apostólicos falsos ou em círculos dissidentes. A palavra “apócrifo” significa oculto ou escondido, termo que, no contexto cristão antigo, acabou designando escritos de autoridade duvidosa, muitas vezes repletos de doutrinas secretas ou extravagantes. Desde cedo, a Igreja discerniu esses textos espúrios e decidiu excluí-los do catálogo sagrado. Vejamos os motivos principais que levaram à rejeição dos evangelhos apócrifos:
1. Autoria Pseudônima e Data Tardia:
Praticamente todos os evangelhos apócrifos foram escritos muitas décadas (às vezes séculos) após os eventos que narram, por autores que não foram testemunhas oculares de Jesus. Para ganhar credibilidade, circulavam sob um nome apostólico falso (pseudepígrafo), alegando ser obra, por exemplo, de Pedro, Tomé ou Maria Madalena – quando, na verdade, seus verdadeiros autores eram desconhecidos e viveram bem depois.
A Igreja antiga tinha forte senso de quais escritos provinham efetivamente dos tempos apostólicos. Quando surgia um texto em nome de um apóstolo já falecido há muito, e desconhecido pelas comunidades que conviveram com aquele apóstolo, a suspeita era automática.
Eusébio relata que nenhum dos presbíteros antigos mencionou ou usou evangelhos como os de Pedro, Tomé ou Matias, implicando que não foram transmitidos pelos apóstolos de verdade. Assim, esses escritos careciam de apostolicidade genuína – o primeiro critério de canonicidade.
Por exemplo, o Evangelho de Tomé (descoberto em Nag Hammadi) é datado pela maioria dos estudiosos entre 130-170 d.C., ou seja, muito depois da morte do apóstolo Tomé, revelando tratar-se de um falso epônimo. A Igreja preferiu confiar nos textos comprovadamente oriundos do séc. I, próximos aos fatos e aos apóstolos reais.
2. Conteúdo Heterodoxo (Gnóstico/Docético):
Grande parte dos evangelhos apócrifos emergiu de círculos heréticos, especialmente dos movimentos gnósticos dos séculos II e III. Esses grupos – Valentinianos, Cainitas, Docetas, etc. – tinham interpretações radicalmente distintas do cristianismo. Seus escritos refletem doutrinas estranhas: ideia de salvação por conhecimento secreto (gnosis), negação da encarnação (Jesus apenas aparentava ser humano, uma heresia chamada docetismo), desprezo pelo corpo e pela matéria, etc.
Naturalmente, tais conteúdos colidiam com a fé “ortodoxa” pregada publicamente pelos apóstolos. Os Padres da Igreja perceberam prontamente essas discrepâncias. Serapião, bispo de Antioquia (200 d.C.), ao examinar o chamado Evangelho de Pedro, constatou traços docéticos no texto e declarou: “Rejeitamos os pseudo-epígrafos que andam sob os nomes [apostólicos]... percorri o livro [Evangelho de Pedro] e encontrei ali, junto da verdadeira doutrina do Salvador, alguns acréscimos”.
Ou seja, apesar de conter passagens aparentemente ortodoxas, o evangelho apócrifo de Pedro tinha inserções doutrinárias falsas, suficientes para condená-lo. Eusébio igualmente sentencia que esses livros apócrifos apresentam estilo e ensinamentos em total desacordo com a verdadeira ortodoxia, prova cabal de que “não merecem nem mesmo ser colocados entre os apócrifos, mas sejam rejeitados como absurdos e ímpios".
Exemplos de conteúdos heréticos: o Evangelho de Filipe (gnóstico, séc. III) defende que somente mulheres virgens entram no Paraíso, rejeitando o matrimônio; o Evangelho de Tomé prega que a salvação vem do autoconhecimento e que a “centelha divina” está dentro de cada um – conceitos gnósticos que divergem do ensino cristão sobre graça e fé. Tais teorias faziam com que a Igreja não pudesse reconhecer esses escritos como inspirados, pois Deus não inspiraria mensagens contrárias à fé recebida.
3. Contradição aos Evangelhos Apostólicos:
Muitos apócrifos trazem relatos fantasiosos ou contraditórios em relação aos Evangelhos canônicos. Isso também pesou contra eles. Quando um texto apresentava um Jesus drasticamente diferente do testemunhado pelos apóstolos, ou episódios claramente lendários, a comunidade cristã percebia não se tratar da mesma tradição fidedigna.
Por exemplo, o Evangelho de Pedro narra a ressurreição de maneira espetacular: diz que Jesus saiu do túmulo acompanhado por dois anjos gigantes e uma cruz falante, e que Jesus parecia ter altura sobrenatural. Essa descrição contrasta com a sobriedade dos Evangelhos canônicos (que não descrevem ninguém vendo Jesus sair do sepulcro, apenas o túmulo vazio e aparições posteriores moderadas).
Além disso, o Evangelho de Pedro insinua que Jesus não sentiu dor na cruz (eco de docetismo – Jesus como espírito imune ao sofrimento físico), divergindo da clara afirmação canônica de que Cristo sofreu e morreu em carne. Diante dessas discrepâncias, os líderes cristãos rejeitaram tais obras por distorcerem os fatos centrais da vida de Cristo.
Da mesma forma, o Evangelho de Judas (produzido por gnósticos cainitas) retratava Judas como herói possuidor de conhecimento secreto, em inversão completa do papel do traidor – algo que Ireneu, no séc. II, já denunciava ironicamente, dizendo que essa seita “elogia Judas” e ousou apresentar uma falsificação chamada Evangelho de Judas.
A existência de versões tão divergentes da história de Jesus serviu de contraste para destacar a confiabilidade superior dos quatro Evangelhos recebidos: sempre que surgia um “outro evangelho” (para usar a expressão paulina), ele era medido contra o padrão dos escritos apostólicos autênticos e invariavelmente falhava no teste.
4. Falta de Uso Litúrgico e Aprovação Eclesial:
Os evangelhos apócrifos, de modo geral, nunca foram lidos nas assembleias da Igreja universal nem citados como Escritura pelos sucessores dos apóstolos. Pelo contrário, as referências antigas a eles costumam vir acompanhadas de advertência.
Orígenes e Eusébio mencionam alguns pelo nome apenas para dizer que não são reconhecidos e contêm erros. Nenhum desses textos figurava na pregação oficial ou na catequese ortodoxa. Assim, eles não passaram pelo crivo da tradição viva e consensual. A Igreja entendia que, se um escrito era realmente inspirado e proveitoso, o Espírito Santo o teria feito brilhar no uso comum das igrejas – como de fato ocorreu com os Evangelhos canônicos e cartas apostólicas, que foram amplamente copiados, lidos no culto e comentados pelos Padres.
Os apócrifos, ao contrário, ficaram “escondidos” em círculos marginais ou foram descartados assim que examinados. Um caso ilustrativo: no final do séc. II, a comunidade de Rhossus (Síria) começou a usar o Evangelho de Pedro. Quando o bispo Serapião soube disso, inicialmente permitiu a leitura, presumindo que o texto fosse ortodoxo; mas após averiguar seu conteúdo, proibiu-o terminantemente e escreveu um tratado refutando “as mentiras contidas nesse evangelho”. Ele deixou claro: “acolhemos [o apóstolo] Pedro... mas rejeitamos os escritos falsamente atribuídos a eles”. Ou seja, a própria circulação litúrgica foi barrada pela autoridade apostólica local. Reações semelhantes ocorreram em outros lugares, impedindo que evangelhos apócrifos ganhassem espaço na vida devocional e doutrinal da Igreja ortodoxa.
Em resumo, os motivos teológicos e históricos da exclusão dos apócrifos são claros: eles não vinham dos apóstolos, contradiziam a fé e os relatos confiáveis, e nunca gozaram de aceitação geral entre os fiéis apostólicos. Os líderes da Igreja, como fiéis guardiões do depósito da fé recebido (cf. 1Tm 6,20), agiram zelosamente para preservar os cristãos do erro e da mentira.
Essa vigilância impediu que livros espúrios confundissem a mensagem cristã. Como conclui um estudo patrístico: “a Igreja sempre foi porto seguro para quem deseja conhecer a Verdade”, pois soube discernir e rejeitar os pseudo-evangelhos heterodoxos . A seguir, examinaremos mais de perto alguns dos principais evangelhos apócrifos, tanto para ilustrar suas características quanto para avaliar sua confiabilidade histórica frente aos Evangelhos canônicos.
Exemplos de Evangelhos Apócrifos Rejeitados
Vários escritos apócrifos circularam nos primeiros séculos, mas aqui destacamos alguns dos mais conhecidos e as razões específicas de sua rejeição:
Evangelho de Pedro: Escrita ca. 150 d.C., atribuída falsamente ao apóstolo Pedro. Relata a paixão e uma versão distinta da ressurreição, com elementos lendários (anjos gigantes, cruz que fala) e tendência docética (minimiza o sofrimento de Jesus). Foi rapidamente condenado pelos bispos (caso de Serapião de Antioquia) por conter “mentiras” e doutrina estranha. A análise histórica indica que este texto provavelmente se originou em meios heterodoxos (talvez marcionitas ou docetas) por volta de meados do séc. II. Sua narrativa fantástica e tardia não tem o peso de testemunho ocular, por isso foi descartado.
Evangelho de Tomé: Coleção de 114 ditos atribuídos a Jesus, sem narrativa, provavelmente composto no séc. II (alguns argumentam fim do I). Descoberto em Nag Hammadi (Egito) em 1945, escrito em copta. Embora contenha alguns ditos similares aos canônicos, outros são claramente gnósticos ou enigmáticos (ex: afirma que o Reino está dentro de nós e que os homens devem se tornar “um só” e mulheres “se tornar homens” para entrar na vida, dito 114). O Jesus de Tomé é um revelador místico de auto-conhecimento, não o Cristo encarnado e redentor. Não menciona a crucificação ou ressurreição de Cristo, focando em sabedoria esotérica. A Igreja não o reconheceu porque, além de tardio e pseudônimo, contrasta em espírito com a pregação apostólica (não fala de cruz, salvação, graça, etc.) e foi usado principalmente por gnósticos. Seu conteúdo de “centelha divina interior” e salvação pelo conhecimento secreto foi considerado herético.
Evangelho de Maria (Madalena): Texto fragmentário (conhecido de dois manuscritos gregos parciais do séc. III e um copta do V) atribuído a Maria Madalena. Descreve diálogos pós-ressurreição em que Jesus confiaria revelações secretas a Maria Madalena, causando ciúmes ou ceticismo em Pedro e outros discípulos. Contém ideias gnósticas – por exemplo, nega a validade de leis estabelecidas e enfatiza visões místicas. Foi rejeitado por ensinar que Maria teria recebido instrução privada contrária ao ensino público, o que mina a natureza pública e universal da Revelação cristã. Além disso, historicamente, é um texto bem tardio e sem atestação nos primeiros padres. Sua figuração de Maria como portadora de doutrina secreta se alinha ao gnosticismo do séc. II, não à tradição apostólica.
Evangelho de Filipe: Achado em Nag Hammadi (códice II, junto com Tomé e outros), provavelmente do séc. III. Não é um evangelho narrativo, mas uma coletânea de ensinamentos gnósticos e reflexões – inclusive sobre sacramentos gnósticos. Tornou-se conhecido por referências a Maria Madalena como companheira especial de Jesus (chegando ao sensacionalismo moderno de supor casamento, algo que o texto em si não afirma explicitamente). Diz que Jesus frequentemente “mudava de aparência” diante dos discípulos, reforçando uma teologia docetista/gnóstica em que o corpo físico de Jesus era ilusório ou maleável. Também contém a curiosa afirmação de que somente mulheres virgens entram no céu, desvalorizando o matrimônio e a procriação – algo totalmente incompatível com a visão cristã. A Igreja, reconhecendo o caráter aberrante dessas ideias e a falta de qualquer raiz apostólica no texto, nunca o considerou legítimo.
Evangelhos da Infância (Protoevangelho de Tiago, Evangelho da Infância de Tomé): Estes narram supostos milagres e eventos da infância de Maria e de Jesus. O Protoevangelho de Tiago (séc. II) foca no nascimento de Maria e a natividade de Jesus com detalhes lendários (como a presença de parteiras na gruta, etc.); já o Infância de Tomé retrata o menino Jesus realizando milagres extravagantes e às vezes caprichosos (por exemplo, moldando pássaros de barro e dando-lhes vida). Embora não necessariamente heréticos no conteúdo central, esses escritos foram vistos como apócrifos por sua origem incerta e elementos fantasiosos não atestados pela tradição. Eles parecem tentativas populares de preencher lacunas biográficas, mas sem base histórica sólida. A Igreja preferiu confiar nos evangelhos canônicos de Mateus e Lucas para as narrativas da infância de Cristo, e relegou esses textos ao status de lendas piedosas não-inspiradas.Em todos os casos acima, nota-se um padrão: os apócrifos foram produzidos fora do círculo apostólico, frequentemente para promover agendas teológicas particulares (gnósticas, docetas, encratitas etc.) ou satisfazer curiosidade, e não para transmitir fielmente a tradição recebida.
Assim, teologicamente eram perigosos ou supérfluos, e historicamente careciam de credibilidade por estarem distantes das testemunhas oculares. A exclusão desses escritos do cânon não foi um “capricho” dos concílios, mas o resultado natural de a Igreja reconhecer que tais obras não carregavam o mesmo selo de autenticidade que os Evangelhos e escritos apostólicos verdadeiros.
Confiabilidade Histórica e Textual: Apócrifos vs. Evangelhos Canônicos
Do ponto de vista historiográfico, os Evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) possuem incomparavelmente maior confiabilidade que os evangelhos apócrifos. Diversos fatores contribuem para isso:
Antiguidade e Testemunho Ocular: Os Evangelhos canônicos foram compostos no séc. I d.C., dentro da vida de testemunhas oculares. Vimos anteriormente em nosso estudo que há boas evidências apontando para uma datação anterior a 70 d.C, com alguns evangelhos provavelmente datados em 50-55 d.C – quando ainda havia memórias vivas dos eventos. Essas datas significam que o lapso temporal entre os acontecimentos (c. 30-33 d.C.) e seu registro escrito é de poucas décadas, permitindo que fontes oculares e orais confiáveis fossem usadas.
Já os evangelhos apócrifos, tipicamente, surgiram de 50 a 150 anos mais tarde. Por exemplo, o Evangelho de Tomé na forma final provavelmente c. 140 d.C. (quando não depois); o Evangelho de Pedro em meados do séc. II; o Evangelho de Judas talvez ca. 150-180 d.C.; Evangelho de Maria idem.
Esses textos, portanto, estão duas ou três gerações afastados dos eventos – as testemunhas diretas já haviam falecido e a informação é de segunda, terceira mão ou pura invenção teológica.
Em historiografia, fontes mais próximas temporalmente ao fato geralmente têm mais peso. Além disso, os apócrifos não reivindicam testemunhas oculares reais (apesar de usarem nomes apostólicos para o título, o conteúdo frequentemente denuncia origens posteriores).
Em contraste, dois dos Evangelhos canônicos são atribuídos a apóstolos que conviveram com Jesus (Mateus e João) e os outros dois a companheiros de apóstolos (Marcos de Pedro; Lucas de Paulo), os quais basearam seus relatos em investigação e entrevistas com testemunhas (cf. Lc 1,1-4). Assim, o vínculo histórico dos canônicos com os fatos é incomparavelmente mais forte.
Apoio Manuscrítico e Difusão: Os Evangelhos canônicos foram amplamente copiados e disseminados desde cedo, o que reflete sua importância e proporciona hoje farto material para análise textual. Temos milhares de manuscritos gregos do Novo Testamento (e porções dele), centenas apenas dos Evangelhos, alguns fragmentos datando do séc. II.
O mais antigo de todos é o famoso Papiro Rylands P52, um fragmento do Evangelho de João datado paleograficamente por volta de 125-150 d.C., encontrado no Egito. Isso significa que dentro de aproximadamente 30 anos após João escrever seu Evangelho (na Ásia Menor), já havia cópias circulando a grande distância.
Nenhum evangelho apócrifo possui evidência tão antiga de circulação. De fato, os manuscritos que temos dos apócrifos são escassos e tardios: o de Tomé é do séc. IV (Nag Hammadi, em copta), com alguns fragmentos gregos do III; o de Pedro sobrevive apenas em um fragmento de pergaminho do séc. VIII (descoberto em 1886 no Egito); o de Maria, fragmentos do III/IV; Judas, um códice copta deteriorado do séc. IV; etc. Essa pobreza e tardança de evidências manuscritas sugerem circulação limitada e transmissão textual irregular.
Já os Evangelhos canônicos, por serem continuamente copiados e lidos em tantas comunidades, nos legaram uma corrente manuscrita contínua e abundante, que apesar das variantes textuais (naturais em cópias à mão) permite, pela ciência da crítica textual, reconstruir com alto grau de confiança o texto original. Em outras palavras, sabemos o que os evangelhos canônicos diziam originalmente muito melhor do que podemos saber de qualquer apócrifo, cuja tradição textual é fragmentária.
Imagem: Fragmento Papiro P52 (Rylands P⁴⁵⁷) do Evangelho de João, datado de 125-150 d.C., o manuscrito mais antigo de um texto do Novo Testamento. Esse pequeno fragmento (8,9 x 6 cm) contém João 18, 31-33,37-38 e atesta que o Evangelho de João – e por extensão os sinópticos – já circulava no começo do séc. II, muito antes do aparecimento dos evangelhos gnósticos.
Corroborabilidade e Contexto Histórico: Os Evangelhos do cânon demonstram forte enraizamento no contexto histórico do século I na Palestina – detalhes geográficos, políticos, culturais e religiosos precisos. Eles mencionam personagens verificáveis (Pilatos, Caifás, Herodes, César Tibério, etc.), costumes judaicos autênticos, toponímia acurada da Palestina, e refletem debates teológicos daquele tempo (fariseus vs. saduceus, Messias, interpretação da Lei, etc.).
Quando confrontamos com fontes externas (historiadores romanos e judeus como Tácito, Flávio Josefo, ou achados arqueológicos), os Evangelhos canônicos mostram-se coerentes com o cenário histórico real. Em contraste, muitos evangelhos apócrifos carecem desse tipo de corroboração contextual.
Por exemplo, o Evangelho de Tomé, sendo uma coleção de ditos desconectados, não fornece cenário ou narrativa histórica; dificilmente podemos testá-lo contra contexto, pois sua natureza é atemporal e filosófica. Já o Evangelho de Pedro tem alguns pontos de contato (narra a paixão sob Pilatos), mas logo envereda por elementos fabulosos que denunciam elaboração posterior.
Os escritos gnósticos frequentemente colocam discursos de Jesus após a ressurreição revelando cosmologias complexas – esses diálogos não têm forma de memórias históricas, mas de tratados teológicos. Além disso, em termos de verificação por múltiplas fontes, os quatro Evangelhos canônicos frequentemente confirmam uns aos outros em diversas informações (cada um adicionando sua perspectiva), e ainda recebem suporte indireto de cartas apostólicas (por exemplo, Paulo em 1Coríntios 15 resume aparições do Ressuscitado similares às dos Evangelhos).
Os apócrifos, ao contrário, não possuem confirmações independentes: geralmente cada um traz um material singular, não corroborado por outras fontes antigas, o que torna sua credibilidade histórica bastante baixa.
Objetividade e Sobriedade Narrativa: Embora às vezes os críticos apontem diferenças narrativas entre Mateus, Marcos, Lucas e João, no conjunto esses Evangelhos oferecem relatos essencialmente congruentes dos principais eventos (vida pública, crucificação, sepultamento e ressurreição de Jesus) e o fazem com uma sinceridade crua – incluindo aparentes constrangimentos (como o fato de mulheres serem as primeiras testemunhas da ressurreição, algo embaraçoso na cultura da época se fosse inventado; ou as negações de Pedro, as dúvidas de Tomé, etc.).
Tal “critério do constrangimento” sugere autenticidade: são detalhes que não teriam sido forjados para favorecer uma narrativa, mas foram relatados porque era o que de fato ocorreu. Já os evangelhos apócrifos, especialmente os gnósticos, frequentemente carecem de narrativas concretas e quando trazem detalhes, estes parecem tendenciosos ou fantasiosos.
O Evangelho de Judas, por exemplo, pinta uma cena onde apenas Judas compreende o verdadeiro Jesus, enquanto os demais apóstolos são tolos – claramente uma construção ideológica para promover a visão gnóstica cainita, não um registro imparcial de fatos.
Essa falta de critério de objetividade mina a confiabilidade histórica dos apócrifos. Além disso, os Evangelhos canônicos foram escritos numa época em que ainda havia pessoas que poderiam contestar grandes falsidades – e não temos registro de contrapartidas antigas chamando-os de ficções (os oponentes judeus e pagãos reconheciam que os cristãos seguiam tais relatos, atacavam-nos por outros motivos, mas não por serem recentes ou espúrios). Já os apócrifos muitas vezes foram contestados ou simplesmente ignorados pelo público geral, indicando que não gozavam de credibilidade.
Testemunho dos Pais da Igreja: Os primeiros escritores cristãos – Papias, Policarpo, Justino, Ireneu, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, etc. – citam abundantemente os Evangelhos canônicos e demais escritos do Novo Testamento, atribuindo-lhes autoridade. Por outro lado, referências a evangelhos apócrifos nesses autores são raras e, quando ocorrem, é para alertar contra eles. Isso demonstra que, historicamente, a tradição "mainstream" do cristianismo se alimentou quase exclusivamente dos quatro Evangelhos.
Se os apócrifos contivessem verdadeiras informações históricas adicionais sobre Jesus, seria de se esperar que cristãos cultos do séc. II/III tivessem interesse em preservá-las – no entanto, eles as rejeitaram. Ireneu, por exemplo, empenhou-se em combater os “inúmeros escritos” dos gnósticos, reafirmando que a verdadeira história e doutrina de Cristo vinha dos quatro evangelhos recebidos e das tradições públicas da Igreja. O fato de os Padres tratarem os apócrifos como inúteis ou perigosos indica que não os consideravam historicamente confiáveis – e estes homens estavam muito mais próximos da época, podendo julgar com conhecimento de causa (alguns, como Ireneu, tinham ligação com discípulos de apóstolos, e certamente saberiam se um “Evangelho de Pedro” ou “de Tomé” tivesse base real antiga).
Concluindo, pela soma de evidências, os Evangelhos canônicos são fontes históricas de muito maior valor sobre Jesus de Nazaré do que os evangelhos apócrifos. Isso não significa que tudo nos canônicos seja automaticamente corroborado por evidência externa (como em qualquer documento antigo, há pontos discutidos por historiadores), mas significa que, se quisermos nos aproximar dos ditos e feitos reais de Jesus, é aos canônicos que devemos recorrer em primeiro lugar. Os apócrifos podem ter interesse para entender correntes heterodoxas posteriores, mas não acrescentam fatos confiáveis à biografia de Jesus – ao contrário, em geral apresentam um Cristo adulterado pelas filosofias do séc. II, ou lendas devocionais sem verificação. Essa realidade tem implicações diretas para o tema crucial da Ressurreição de Cristo, como exploraremos a seguir.
A Seleção Canônica e a Credibilidade dos Relatos da Ressurreição
A Ressurreição de Jesus é o cerne da fé cristã e um acontecimento que se coloca à prova da história. Para defendermos a historicidade da Ressurreição, é vital termos testemunhos fidedignos desse evento. É exatamente isso que a formação do cânon do Novo Testamento assegurou: que os relatos da ressurreição considerados pela Igreja fossem aqueles de origem apostólica comprovada e livre de distorções lendárias, fortalecendo enormemente sua credibilidade.
Primeiramente, todos os quatro Evangelhos canônicos narram a morte na cruz, o sepultamento e as aparições de Jesus ressuscitado no terceiro dia – ainda que com diferenças de pontos de vista, apresentam um núcleo histórico comum: o túmulo vazio descoberto por mulheres devotas, a incredulidade inicial dos discípulos, seguida por várias aparições corpóreas de Cristo vivo (às mulheres, a Pedro, aos Doze, a discípulos em Emaús, etc.), culminando no envio missionário.
A inclusão desses quatro relatos no cânon proporciona uma “multibiografia” do evento pascal, oferecendo múltiplos pontos de vista independentes que se corroboram. Na metodologia histórica, múltipla atestação de um fato em fontes distintas e próximas ao evento é um forte indício de historicidade. Assim, o fato de Mateus, Marcos, Lucas e João (e poderíamos acrescentar Paulo em 1Coríntios 15:3-8) todos testemunharem a ressurreição – ainda que de modos narrativos diferentes – confere grande peso à realidade do evento. Se apenas um evangelho existisse, céticos poderiam descartar como lenda isolada; mas com vários testemunhos congruentes, essa explicação simplista enfraquece.
Em contraste, os evangelhos apócrifos ou não mencionam a ressurreição ou a tratam de forma problemática. O Evangelho de Tomé, por exemplo, termina sem qualquer menção à paixão ou ressurreição – para seus autores gnósticos, a ressurreição física talvez não fosse relevante ou era interpretada apenas simbolicamente (gnósticos tendiam a desprezar a ideia de ressurreição corporal).
O Evangelho de Pedro traz um relato extravagante da ressurreição que, como vimos, foi rejeitado por ser teologicamente suspeito; se dependêssemos dele, a ressurreição pareceria um mito fantasioso digno de desconfiança histórica. Outros, como o Evangelho de Maria, presumem Jesus ressuscitado dando ensinamentos esotéricos, mas tais diálogos carecem de conexão com testemunhos oculares reconhecidos e servem sobretudo de veículo para doutrinas gnósticas (negando, por exemplo, que Jesus “deixou leis” – minando a continuidade com o Jesus histórico que ensinou mandamentos). Em suma, os escritos apócrifos não oferecem um testemunho histórico sólido da ressurreição: ou ignoram o evento, ou o transformam em algo místico-alegórico, ou inserem elementos claramente lendários. Logo, se algum desses textos tivesse sido incluído indevidamente no cânon, traria contradições e fragilidade ao corpo de testemunhos da Páscoa cristã.
A seleção canônica realizada pela Igreja primitiva evitou esse problema ao filtrar os relatos, retendo apenas aqueles com pedigree apostólico. Isso significa que os relatos da ressurreição que lemos nos Evangelhos canônicos provêm de fontes que estavam em contato com as testemunhas originais: por exemplo, o evangelho de Marcos é tradicionalmente visto como baseado na pregação de Pedro (testemunha do Ressuscitado), Lucas investigou diligentemente e conviveu com Paulo (que encontrou o Ressuscitado na visão de Damasco), Mateus e João foram eles próprios do colégio dos Doze.
Assim, as histórias do sepulcro vazio e das aparições não são lendas tardias, mas memórias da primeira geração. A Igreja, ao canonizá-las, preservou essas memórias autênticas. Ao mesmo tempo, descartou versões aberrantes (como a de Pedro) onde elementos legendários posteriores já começavam a surgir. Graças a esse discernimento, os evangelhos que chegaram até nós apresentam a ressurreição de modo sóbrio e testemunhal, com sinais claros de origem primitiva. Isso robustece a alegação apologética de que a ressurreição não foi um mito desenvolvido séculos depois, mas uma proclamação originária do próprio século I – ponto confirmado pela crítica moderna, que reconhece, por exemplo, que a fórmula de testemunhas de 1Coríntios 15:3-7 remonta aos primeiros anos após a cruz (talvez 35-40 d.C.).
Outro aspecto importante: a Igreja não apenas selecionou os livros, mas defendeu a integridade desses textos através dos séculos, o que implica que os relatos da ressurreição neles contidos chegaram praticamente intocados até nós. Mesmo que copistas medievais possam ter inserido variantes mínimas, o grosso da narrativa é estável e bem atestado pelas cópias antigas.
Assim, temos alta confiança de que quando lemos, por exemplo, Lucas 24 ou João 20-21, estamos acessando substancialmente o mesmo testemunho que circulava no século II. Essa continuidade textual foi possível porque a Igreja definiu o cânon – uma vez definido, havia um incentivo em toda a cristandade para copiar esses textos fielmente, já que eram Escritura sagrada. Em contraste, muitos apócrifos se perderam ou sobreviveram incompletos; se contivessem algo de valor histórico da ressurreição (o que não parece ser o caso), esse testemunho teria sido truncado pela falta de transmissão. A solidez textual canônica, portanto, beneficia a investigação histórica da ressurreição.
Além disso, a uniformidade do cânon evitou confusão doutrinária sobre a ressurreição. Imagine se um texto gnóstico negando a ressurreição física tivesse obtido status canônico – a própria mensagem cristã ficaria em contradição interna. Felizmente, os responsáveis por reconhecer o cânon garantiram que os livros inspirados concordassem entre si na mensagem central.
Os quatro Evangelhos, junto com Atos e Epístolas, formam um testemunho coerente: Cristo morreu, foi sepultado e ao terceiro dia ressuscitou corporalmente, aparecendo a muitos, e esse acontecimento cumpre as Escrituras e fundamenta a pregação da Igreja. A exclusão dos apócrifos em si reflete a convicção dos primeiros cristãos de que só os relatos apostólicos – derivados de quem “comeu e bebeu com ele depois que ressuscitou” (At 10,41) – eram dignos de fé.
Do ponto de vista apologético, podemos argumentar que a credibilidade dos relatos da ressurreição é fortalecida não só pela natureza desses relatos, mas também pelo fato de terem sido reconhecidos e preservados pela comunidade que melhor podia avaliá-los: a Igreja primitiva.
Se a ressurreição fosse uma lenda inventada muito depois, não haveria razão para que a Igreja rejeitasse tantos escritos tardios e se apegasse justamente aos mais antigos. O zelo em manter o cânon “puro” indica que havia uma consciência de guardar a tradição verdadeira dos apóstolos.
Essa tradição inclui a ressurreição como fato. Portanto, a seleção canônica – longe de ser um ato conspiratório de suprimir outras “verdades” – foi na realidade um processo de preservação da verdade original contra distorções.
Como resultado, hoje podemos, com base nos Evangelhos canônicos, construir um forte caso histórico para o túmulo vazio e as aparições pascais, sustentado por fontes de qualidade.
Quando céticos modernos evocam “evangelhos apócrifos” tentando relativizar os canônicos, é importante notar que os historiadores sérios não colocam ambos no mesmo patamar: os canônicos têm prioridade histórica, e isso é reconhecido mesmo fora de círculos religiosos, dada a análise crítica das datas e contextos.
Em suma, a formação do cânon fortalece a historicidade da Ressurreição porque:
- Eliminou documentos não confiáveis, deixando-nos com narrativas escritas por ou baseadas em testemunhas oculares;
- Promoveu a ampla transmissão desses testemunhos, permitindo que chegassem até nós praticamente intactos;
- Garantiu a harmonia doutrinal das fontes, atestando unanimemente a natureza corporal e real da ressurreição;
- Evidencia que já no século II os cristãos sabiam distinguir fato de ficção no tocante a Cristo ressuscitado – eles abraçaram os relatos factuais e repudiaram as especulações espúrias.
Dessa maneira, quem investiga a Ressurreição hoje pode se apoiar confiantemente nos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, ciente de que eles foram reconhecidos como genuínos pelas comunidades originárias e permanecem as melhores fontes históricas sobre aquele domingo de Páscoa em Jerusalém, no ano 30 (ou 33) d.C., quando o túmulo foi encontrado vazio e inúmeras vidas foram transformadas para sempre.
Conclusão
A investigação sobre o cânon do Novo Testamento e os evangelhos apócrifos revela um fato importante: a Igreja primitiva atuou como “filtro vivo” da tradição de Jesus, reconhecendo os escritos autênticos e descartando os espúrios, de modo a transmitir fidelmente o evangelho às futuras gerações.
Cronologicamente, vimos que a formação do cânon não foi instantânea, mas ocorreu ao longo de séculos, guiada por critérios racionais – apostolicidade, ortodoxia, uso generalizado – que garantiram a seleção dos textos verdadeiramente inspirados e historicamente confiáveis. Em paralelo, os chamados evangelhos apócrifos foram excluídos precisamente por falharem nesses critérios: surgiram tarde, sob falsos nomes, pregando doutrinas estranhas e sem reconhecimento pelas igrejas apostólicas. A patrística e a historiografia bíblica concordam que tais escritos apócrifos são de valor histórico limitado e frequentemente tendenciosos, especialmente quando comparados aos sóbrios e próximos relatos canônicos.
Ao contrapor a confiabilidade histórica dos evangelhos canônicos à dos apócrifos, constatamos que os quatro Evangelhos do Novo Testamento possuem bases sólidas – foram escritos quando testemunhas ainda viviam, largamente copiados (permitindo-nos tê-los em mãos hoje quase na íntegra do original) e validados pela sucessão apostólica imediata.
Já os apócrifos carecem de atestação equivalente, e seus conteúdos frequentemente refletem mais as ideologias do séc. II do que lembranças do séc. I. Como resultado, a fé cristã na Ressurreição de Cristo se apoia em documentos de alta fidedignidade, que passaram pelo crivo dos contemporâneos dos apóstolos.
Integrando esses achados ao objetivo apologético: mostramos que não há um “evangelho oculto” mais confiável ou uma conspiração para esconder versões “verdadeiras” sobre Jesus. Pelo contrário, a própria existência do cânon – definido contra uma miríade de apócrifos – testemunha em favor da autenticidade dos relatos que ficaram.
A Igreja selecionou os Evangelhos que apresentavam um Jesus real, que nasceu, morreu na cruz sob Pôncio Pilatos e ressuscitou fisicamente ao terceiro dia, rejeitando aqueles que deturpavam essa verdade central. Assim, quando afirmamos hoje que “Cristo ressuscitou!”, estamos nos baseando em testemunhos críveis, guardados e transmitidos zelosamente desde a antiguidade. Em última análise, a formação do cânon do Novo Testamento não foi um obstáculo, mas sim um aliado da busca histórica pela verdade de Cristo, permitindo que possamos crer, com bases documentais e racionais, que “naquela manhã de domingo... ocorreu um evento que mudou o mundo”: Jesus de Nazaré venceu a morte, conforme narram fidedignamente os Evangelhos de seu santo Cânon.
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